sexta-feira, 2 de março de 2012

Muito além da Cúpula do Trovão

Muito Além da Cúpula do Trovão

O Sol se põe em Avid, o deserto sem fim. Apenas na escuridão a vida selvagem consegue florescer. Séculos se passaram desde a Grande Luz e o mundo parece ter finalmente se estabilizado.

No centro do deserto, descansa a cidade de Oletropme, último dos grandes assentamentos humanos e sede da Empresa.

A Empresa guiou nosso povo durante os tempos de caos e sede. Ela deu a nossos ancestrais água, comida e abrigo. Não há honra maior do que servir à Empresa. Nenhuma morte é mais honrada do que a daquele que morre a serviço Dela.

Jemov está em seu quarto. Ele dá boas-vindas ao ar fresco da noite. De sua janela ele pode ver quase toda a cidade. O acendimento dos lampiões no setor subalterno, a troca da guarda na paliçada, a Torre...

É uma noite importante para Jemov. A noite para a qual ele foi preparado por toda sua vida. Hoje, a Empresa irá selecionar um novo Alto-funcionário dentre os jovens da cidade. Sua família está nos altos círculos da Empresa desde tempos sem memória. Ele não deve falhar. Ele não pode falhar.

Desce as escadas. Sua família ainda está dormindo. É melhor assim. Jemov sobe no coche e chama um subalterno para puxá-lo. Um funcionário deve ser pontual.

O caminho passa pela zona residencial baixa. As pessoas param e assistem ele passar. Sabem para onde ele está indo. Talvez tenham filhos que irão disputar essa vaga com ele. Talvez seja ele que irá trazer a dor para a casa de uma dessas pessoas. Mas basta. Um funcionário não deve se distrair com bobagens.

A Torre está próxima. Uma pequena multidão está aglomerada lá tentando entrar para assistir a seleção. Jemov desce do coche e manda o subalterno esperar ali. As pessoas abrem caminho quando ele passa. Um baixo funcionário o guia até as salas de preparação. Outros já estão lá. É um momento de contemplação silenciosa e preparação para o que está por vir.

O tempo passa. Os jovens são chamados em pares; apenas um volta.

Chega a vez de Jemov.

Ele é levado até a cúpula do trovão e colocado dentro da grande jaula. Ela deve ter cerca de dez passadas de altura e trinta de diâmetro. O topo é oval e o chão é coberto de areia santificada pelo sangue daqueles que caíram. As arquibancadas estão lotadas e algumas pessoas se perduraram nas grades para poder ver melhor. Em um dos camarotes superiores, ele pode ver seu pai. Não há emoção em seus olhos, somente a compreensão do significado desse momento.

Do outro lado da arena está seu oponente. Ele é gordo e parece estar assustado. Provavelmente foi empurrado pela família até ali.

Os dois adversários se ajoelham diante do camarote da Diretoria. Um dos homens encapuzados levanta a mão em reconhecimento. Um alto-funcionário se levanta e lê uma passagem do Manual do Colaborador. Todos repetem a passagem e o homem guarda o livro sagrado dentro de um pequeno baú.

Cada um dos adversários recebe uma arma, um bastão forjado com o metal dos Antigos. Ele é um pouco mais pesado do que os bastões com que Jemov treinava, mas seu oponente parece estar ainda menos familiarizado com o objeto.

A seleção começa. Jemov faz um ataque rápido para testar seu adversário. O garoto está assustado e não sabe posicionar seus pés. Ele continua atacando rapidamente. Seu adversário se defende precariamente. Não é difícil derrubá-lo com um golpe bem calculado. Jemov olha para a Diretoria e aguarda o destino do garoto que chora a seus pés.

O nariz retorcido do Diretor geral aparece por baixo do capuz. Sob as verrugas e secreções ainda corre o sangue dos sábios Diretores do passado, mantido intacto através de gerações de uniões cossanguíneas. Apenas ele pode saber o que é melhor para a Empresa.

Um sinal negativo. Jemov escuta um grito de mulher vindo das arquibancadas. O bastão não é muito pontiagudo, mas não é difícil atravessar a carne do pescoço com um golpe decidido. Um pouco de sangue espirra no rosto dele enquanto os olhos do garoto se apagam. Ele está servindo à Empresa, e um verdadeiro funcionário nunca demonstra desgosto ao servir à Empresa.

O próximo oponente foi um pouco mais difícil. Estava em boa forma, mas lhe faltava a frieza e elegância necessárias para o bom combate. Ele era forte e rápido, útil para os trabalhos no subterrâneo. Foi poupado.

As horas passam rapidamente. Jemov é obrigado a derrotar a escória da cidade. A Empresa se orgulha de dar chances iguais para todos.

Pela metade da noite os verdadeiros combates começam. Jemov já está ficando cansado e agora está lutando contra seus iguais. Alguns ferimentos leves. Nenhuma outra execução. A luta final se aproxima.

Dentro da sala de preparação, Jemov está ofegante. Ele está ferido. Seu suor se mistura com o sangue dos vencidos e faz com que a areia grude em seu corpo. Ele não pode se limpar. Não há vergonha na luta de um funcionário e ele não deve limpar as marcas de sua bravura até o fim da Seleção. Jemov tenta afastar o nervosismo. É importante manter a calma. Um funcionário sempre mantém a calma. No fundo de seu coração, Jemov está com medo.

Chega a hora da última etapa. A multidão grita. Jemov entra lentamente na cúpula. Do outro lado da arena está Serap, seu antigo irmão de armas. Preparados desde pequenos pelos mesmos mestres, criados nas mesmas condições. Esse é o verdadeiro adversário de Jemov.

A seleção começa. Os dois adversários não se atacam. Eles andam. Observam um ao outro. Esperam uma oportunidade. Ambos sabem que é tolice pensar em misericórdia. Eles já não são irmãos de armas, são candidatos concorrendo à mesma vaga. Só um deles pode vencer.

Trocam alguns golpes, mas não conseguem ferir um ao outro. A platéia berra com todas as suas forças. Apostas são recolhidas. A saliva escorre de um espectador que grita como uma besta enlouquecida.

Serap não se feriu tanto nas outras lutas. Jemov começa a ficar cansado. Agora é Serap que toma a iniciativa nos ataques. O Diretor continua impassível em seu camarote.

Jemov percebe que não irá aguentar se defender por muito tempo. Ele tenta um último ataque, e falha. Seu joelho é atingido em cheio. Ossos de sua perna podem ser vistos por todos na cúpula.

Ele cai. Seu rosto está contra a areia. Sabe que falhou. Não irá se tornar um alto-funcionário. Sua família irá ter vergonha e pena dele. Não foi forte o bastante. Não foi rápido o bastante. Não foi valoroso o bastante.

Serap olha para a Diretoria e aguarda uma ordem.

Jemov sabe que morrerá agora. Fraco, caído no chão da arena. Ele agarra um punhado da areia. Aquela areia suja onde sempre caíram os derrotados.

Uma idéia desesperada surge em sua mente. Ele atira areia na direção do rosto de Serap. Apoiado em seu bastão e na sua perna boa ele faz uma investida contra o oponente cego. O primeiro golpe na cabeça faz com que Serap abra os olhos. Durante um breve instante os dois jovens se encaram. O rosto de Jemov carrega um misto de dor, raiva e desespero; o de Serap, surpresa, e nada mais.

Os primeiros golpes matam Serap. Os próximos desfiguram seu rosto e liberam a raiva de Jemov. Quando ele termina, a cúpula está em silêncio. Há apenas a respiração ofegante de Jemov e as gotas de sangue pingando de seu corpo.

Todo o público está paralisado. Ninguém sabe o que acontece nessa situação.

Sob o capuz do Diretor, lábios deformados formam um sorriso. Com uma gargalhada ele se levanta e começa a bater palmas. A multidão começa a gritar em comemoração. A seleção está encerrada. O novo funcionário foi escolhido.

Os servos erguem Jemov e começam a levá-lo para o médico bom. Em sua mente ele tenta convencer a si mesmo de que fez a coisa certa. Pensa que não foi ele que inventou o jogo e que é apenas um jogador. Tenta apagar de sua mente o olhar de surpresa de Serap.

Os gritos da platéia não permitem que ninguém escute. Mas se alguém aproximasse o ouvido de seus lábios. Perceberia que Jemov repete as mesmas quatro palavras sem interrupção:

“Era ele ou eu”.