quarta-feira, 31 de agosto de 2011

O grande dia


Alice nunca ficou. Todas as suas amigas já ficaram. Praticamente todos que ela conhece já ficaram.
Não é que ela não tenha oportunidades. Alice simplesmente não tem vontade de ficar. No entanto, a situação já está ficando insustentável. Qual é o assunto das fofocas? Ficar. Para quê servem as festas? Ficar. O que as suas amigas fazem? Ficam. Alice se sente excluída. Também existe alguma curiosidade. Como será que é? Mágico? Divertido? Excitante? Enfim, chegou a hora.
Ela é abordada por Miguel.

— E aí, vai na festa da Raquel hoje?
— Vou — Alice ri.
— Então te vejo lá.
— Tá.

No mundo de Alice, esse tipo de conversa significa que os indivíduos irão ficar.
Miguel é o pegadorzinho da área. Aos catorze, ele já ficou com quase todas as gurias da escola. É um bom começo para Alice.

São 17h. A festa começa. As pessoas estão conversando na frente da casa. Alice está atrasada (nessa idade, as festas começam na hora). Miguel começa a perder a paciência e manda uma mensagem para Carina, sua atual ficante:

()”"() ()””()
( .”o o”, ) Queria falar contigo…
()”"()”()
( ö)ö ) ..

A garota fica animada. Alice chega na festa. Miguel percebe e envia outra mensagem para Carina:

Chegou alguém mais interessante.

Carina fica triste. Alice joga conversa fora com as amigas. Miguel se aproxima.

— Quer dar uma volta.
— Tá.

O coração de Alice começa a bater mais rápido. Carina chora. Todos na festa olham para eles. Miguel vai com Alice até o outro lado da rua. Chega o momento. Finalmente Alice experimentará a alegria de um beijo. Ela sente os olhos de todos em suas costas. Imagens de novelas e filmes passam pelos seus olhos. Seus lábios se preparam para o momento que ela estava esperando. É como se o próprio Tempo tivesse parado para assistir a intimidade dos dois jovens amantes. Seus lábios tocam os de Miguel rapidamente. É só isso?
Eles conversam durante alguns minutos. Miguel diz que tem de ir embora e deixa Alice na festa. Ela vai conversar com as amigas. Carina continua berrando.
Às 23h a mãe de Raquel encerra a festa. Alice vai para casa com a sensação de que foi enganada.

sexta-feira, 26 de agosto de 2011

Everybody loves satan! ou Brincando com Pascal

Blaise Pascal nasceu em 1623. No livro “Penseés”, ele apresenta um argumento que supostamente demonstraria que acreditar no deus cristão era a melhor coisa que se poderia fazer. Até hoje, esse argumento ainda surge em discussões sobre o assunto.

Ele pode ser apresentado da seguinte forma:

Podemos acreditar ou não em Deus.

Deus pode ou não existir.

As combinações das possibilidades e suas conseqüências são as seguintes:






















Deus existe Deus não
existe
Acreditamos em Deus Felicidade Eterna Nada
Não
acreditamos em Deus
Sofrimento Eterno Nada




Logo, acreditar no deus Cristão seria a aposta mais segura, uma vez que não traria nenhum prejuízo e não excluiria a possibilidade da felicidade eterna.

Qualquer pessoa suficientemente esclarecida irá identificar facilmente as falhas desse argumento. Esse não é o meu objetivo aqui.

Proponho que aceitemos o argumento. Sim, acreditar em Deus é a melhor aposta. Mas como devemos adorá-lo? Que tipo de Deus é esse?

Tradicionalmente, dividimos deidades em três tipos: benignas, neutras e malignas. Para simplificar as coisas, vamos ignorar os deuses neutros (sua indiferença não afetaria o argumento).

Temos então duas possibilidades quanto a Deus: ou Deus é bom, ou Deus é mau.

Nós também temos duas alternativas quando ao nosso comportamento: ou veneramos um deus bom, ou veneramos um deus mau.

Vamos refazer a tabela:




















Deus é bom Deus é mau
Veneramos um deus bom Felicidade Eterna Sofrimento eterno. MUITO sofrimento. Se o Deus sumamente bom do cristianismo
condena
pessoas ao fogo eterno, imagine o que faria um deus maligno.
Veneramos um deus mau Um período de dor. Mas, como deus é infinitamente
misericordioso, seriamos
perdoados e atingiríamos a felicidade eterna.
O monstro está feliz conosco e não vai nos comer.

Ou seja, a melhor aposta é venerar um deus maligno. Esqueça as igrejas e a caridade. Vamos nos reunir em covis subterrâneos e sacrificar virgens. Vamos espalhar o caos pelo mundo, ouvir funk no ônibus, incendiar orfanatos. O deus bondoso nos perdoaria, o deus maligno nos aprovaria. Não há como perder.

domingo, 21 de agosto de 2011

Inércia


Quinta-feira, 20h30min. Ele chega em casa. Toma um banho rápido. Esquenta alguma coisa no microondas e joga-se, sem forças, no sofá.

Liga a TV. Lentamente a freqüência cardíaca cai. A atividade cerebral diminui. Entra em estado vegetativo. Seu prato já estava vazio há algum tempo quando foi dormir.

6h30min. Reúne as suas forças e levanta. Só falta um dia. Lava-se, veste-se, come e vai trabalhar.

Puxa alavancas. De hora em hora olha para o relógio, e descobre que só se passaram cinco minutos.

O chefe é um idiota. Os colegas são incompetentes. Sem ele a fábrica já teria fechado. E o idiota do Ricardo que foi promovido.

Toca o sinal. Finalmente.

20h30min. Ele chega em casa. Toma um banho rápido. Esquenta alguma coisa no microondas e joga-se, sem forças, no sofá.

Liga a TV. Dá as boas-vindas ao costumeiro torpor. Ele nunca pode assistir a esse programa durante a semana. Já viu esse episódio? Não sabe dizer.

Sábado, 6h30min. Acorda. Ainda está cedo. Volta a dormir.

15h. Dormiu demais. Seu corpo está dolorido. A luz fere seus olhos quando ele vai ao banheiro.

Ouve o rádio enquanto come alguma coisa. Um acidente grave aconteceu na rodovia. Um cantor fez aniversário. Amanhã pode chover.

Liga a TV. Quatro adolescentes tentam conseguir pares para o grande baile. Um homem prende ladrões de gado. Faz um sanduíche para passar o tempo. Um homem aprende o verdadeiro significado do Natal. Dorme.

14h. Acorda. Almoça. Liga a TV. O mocinho salva o mundo. Quatro adolescentes tentam perder a virgindade. Um homem vinga o irmão.

Come alguma coisa. Um repórter come grilos. Um homem pinta retratos em unhas. Orangotangos são inteligentes. Dorme.

6h30min. Reúne as suas forças e levanta. Só faltam cinco dias. Lava-se, veste-se, come e vai trabalhar.