sexta-feira, 22 de junho de 2012

Anfíbio


Anfíbio

Árvores. Um caminho pela floresta. Névoa. Um fundo preto e um fio de fumaça, como a de um cigarro. A fumaça dança. Imagino uma noite árabe. A fumaça verde saindo de uma venda no canto de um beco. Luz sai de uma janela. Penso em uma mulher que dança com olhos tristes. A fumaça se transforma em linhas. As linhas dançam.
O ônibus quase acertou outro carro. O motorista grita. Percebo que ainda não cheguei ao meu destino. O ônibus volta a andar normalmente.
Penso na mulher que dança. Qual será sua história? A música ganha velocidade. Seus olhos agora transmitem força, como se fossem as vozes de um espírito capaz de sentir tudo o que se poderia ter. Sinto a música que não ouço. Entendo seus movimentos. Tento traduzi-los. Os significados parecem se dissolver quando tento firmá-los. É como tentar agarrar fumaça. As imagens começam a perder vida. Ganho controle sobre elas. Isso as mata.
O ônibus está chegando.  Levanto e fico perto da porta. Ela se abre.
Penso na passagem secreta no coração da floresta. Começo a andar. Poderia ser um andarilho caminhando entre ruínas ancestrais. O que poderia ser encontrado em um lugar assim?
Sou arrancado das ruínas. Alguém me faz uma pergunta. Fico confuso com a mudança de ambiente e não entendo o que ela quer. Com algum esforço percebo que devo informá-la quanto ao horário. Faço o que é necessário e a pessoa sai levemente frustrada com minha dificuldade. Provavelmente pensa que tenho algum problema mental.
Tento não pensar no ocorrido. A mulher que dançava agora está sentada no chão. Ela pensa no sol nascendo junto a uma cabana. Penso no interior da cabana e na vida que se levava nela.
Cheguei ao meu destino. Ainda faltam alguns minutos. Começo a observar as árvores. O vento faz com que elas pareçam vivas. Estranhos seres que se comunicam dançando em um idioma que não tem limites nem convenções. A língua infinita que não conhece o tempo.
Alguém se aproxima para conversar. Tento ser cordial, mas não há nada que poderia dizer no momento.  Falo alguma coisa sobre as árvores. Não consigo expressar nada. A língua mata a imagem. É impossível transmitir usando a língua limitada.
Penso em muros que andam. Penso em abraços de ouriços.
Percebo que estou quase atrasado. Tento chegar a tempo.

terça-feira, 15 de maio de 2012

Na Festa


Um homem o interrompeu quando foi cumprimentar o homenageado. Sua mão ficou no ar por alguns segundos. Fez papel de tolo. Aquele não é o seu lugar.
            Agora está em um canto do salão. As aparências o obrigam a permanecer por mais 45 minutos.
            Ele não pode continuar no canto. Pareceria solitário e alguma alma caridosa, julgando-o uma criatura patética, iria puxar conversa: “E aí, tá gostando da festa?”, “Será que chove?”. Isso não deve acontecer.
            Decide disfarçar indo comer alguma coisa. No caminho é obrigado a se desviar de algumas pessoas.
            A mesa está bem sortida. Ele planeja seu curso de ação enquanto belisca cuidadosamente, sabendo que o menor descuido lhe dará fama de glutão.
            Os grupos de conversa parecem tão leves, divertidos, fechados. Não pode simplesmente abordar um. Talvez com uma pergunta? Mas o que faria quando tivesse a resposta?
            – E aí, tá gostando da festa?
            – Hã... Sim.
            É a oportunidade perfeita. Basta sustentar a conversa por algum tempo. Mas como?
            – Então...
O homem já está ficando entediado. Tem que dizer algo interessante agora!
            – Vou ao banheiro.
            Perdeu-o. Agora tem que encontrar outra pessoa. Tentar recomeçar a conversa o faria parecer pegajoso.
            Aproxima-se discretamente de um grupo. Eles discutem o clima. Cuidadosamente ele prepara um comentário espirituoso.
            – M...
            – Um minuto de sua atenção, por favor.
            Fica paralisado. O anúncio o interrompeu na primeira sílaba. Será que perceberam?
            A conversa recomeça e ele não sabe se está no grupo. Fica parado. Algumas pessoas o observam discretamente. É um intruso. A boa educação os impede de expulsá-lo.
            Um milagre! A conversa volta ao ponto em que estava antes do anúncio. Ele tenta. Sucesso! Todos riem. Algumas pessoas passam o comentário adiante. Agora basta ficar perto do grupo. Foi aceito.
            O grupo avança lentamente em direção à mesa. No caminho ele é obrigado a se desviar de alguém.
            Uma a uma as pessoas se sentam. Falta uma cadeira. Seria trabalhoso demais conseguir outra. Espera-se que ele saia.
            – Acho que posso conseguir outra no...
            – Mas o...
            – Não é necessário.
– Que nada, eu vou lá e...
– Não. Eu não ia poder ficar mesmo. Até mais.
– Tchau.
“Estúpido! Idiota! Imbecil!” Devem estar rindo dele agora mesmo.
Ele vaga pelo salão. Por razões que a própria razão desconhece, uma mulher se aproxima.
– E aí, tá gostando da festa?
– Hã... Sim.
Sua presença lhe acalma o espírito. Ela tem uma voz agradável. Exala certa leveza quando fala.
A voz parece lhe hipnotizar. Ao despertar ele percebe que estava encarando os seios da moça.
“Estúpido! Idiota! Imbecil!” Terá percebido?
A conversa flui bem. Ela ri dos seus gracejos desajeitados. A boa educação lhe obriga a ser simpática.
Se ao menos ela reclamasse. Ele poderia dizer: “E pode me culpar?” Os dois ririam. Ele pareceria moderno, liberal, divertido. Se tivesse uma acusação poderia se defender.
– Para... – Ela diz rindo enquanto ajeita os cabelos e lhe empurra o ombro suavemente.
É o golpe de misericórdia. Ela o despreza. Depois da festa a história vai se espalhar. “Estúpido! Idiota! Imbecil!” Será universalmente conhecido como um porco. “Estúpido! Idiota! Imbecil! Chega!”
Ele sai do salão, humilhado. A moça fica confusa, mas logo encontra outra distração.

segunda-feira, 16 de abril de 2012

Lentidão


Sala de aula

Aula chata

O professor fala

Um aluno

Às vezes

Repete

Na rua passam carros

Sempre no horizonte

Ronronando, cantando

Alice quase dorme

Se escora na mesa

Apóia a cabeça

O cabelo preto

Com pontas rosa

E pontas duplas

Uma tesoura

Cinco dedos

Uma distração

Na aula chata

Com uma tesoura

Catar pontas duplas

Que sono...

Ele se sente cansado. Desperdiçou a infância. Desperdiçou a adolescência. Tem medo de desperdiçar a vida adulta.

Tenta capturar o tempo, mas isso é cansativo e inútil. Não sabe fazê-lo. Decide descansar e desperdiçar só um pouquinho de tempo.

No coração não há uma dor. Há um incômodo. Um leve sufoco que passa com o tempo e volta um tempinho depois.

Deita-se. Assiste partículas de pó flutuando contra o sol. Olha para sua mão.

Repassa cenas do que deveria ter feito. Tem saudade do que poderia ter sido. É uma perda de tempo agradável.

Abre os olhos e vê seu quarto. Olha para as cobertas. Pensa em se levantar. Procura motivos para fazer isso. Força os músculos a obedecerem. É desconfortável.

Deveria fazer alguma coisa.

sexta-feira, 2 de março de 2012

Muito além da Cúpula do Trovão

Muito Além da Cúpula do Trovão

O Sol se põe em Avid, o deserto sem fim. Apenas na escuridão a vida selvagem consegue florescer. Séculos se passaram desde a Grande Luz e o mundo parece ter finalmente se estabilizado.

No centro do deserto, descansa a cidade de Oletropme, último dos grandes assentamentos humanos e sede da Empresa.

A Empresa guiou nosso povo durante os tempos de caos e sede. Ela deu a nossos ancestrais água, comida e abrigo. Não há honra maior do que servir à Empresa. Nenhuma morte é mais honrada do que a daquele que morre a serviço Dela.

Jemov está em seu quarto. Ele dá boas-vindas ao ar fresco da noite. De sua janela ele pode ver quase toda a cidade. O acendimento dos lampiões no setor subalterno, a troca da guarda na paliçada, a Torre...

É uma noite importante para Jemov. A noite para a qual ele foi preparado por toda sua vida. Hoje, a Empresa irá selecionar um novo Alto-funcionário dentre os jovens da cidade. Sua família está nos altos círculos da Empresa desde tempos sem memória. Ele não deve falhar. Ele não pode falhar.

Desce as escadas. Sua família ainda está dormindo. É melhor assim. Jemov sobe no coche e chama um subalterno para puxá-lo. Um funcionário deve ser pontual.

O caminho passa pela zona residencial baixa. As pessoas param e assistem ele passar. Sabem para onde ele está indo. Talvez tenham filhos que irão disputar essa vaga com ele. Talvez seja ele que irá trazer a dor para a casa de uma dessas pessoas. Mas basta. Um funcionário não deve se distrair com bobagens.

A Torre está próxima. Uma pequena multidão está aglomerada lá tentando entrar para assistir a seleção. Jemov desce do coche e manda o subalterno esperar ali. As pessoas abrem caminho quando ele passa. Um baixo funcionário o guia até as salas de preparação. Outros já estão lá. É um momento de contemplação silenciosa e preparação para o que está por vir.

O tempo passa. Os jovens são chamados em pares; apenas um volta.

Chega a vez de Jemov.

Ele é levado até a cúpula do trovão e colocado dentro da grande jaula. Ela deve ter cerca de dez passadas de altura e trinta de diâmetro. O topo é oval e o chão é coberto de areia santificada pelo sangue daqueles que caíram. As arquibancadas estão lotadas e algumas pessoas se perduraram nas grades para poder ver melhor. Em um dos camarotes superiores, ele pode ver seu pai. Não há emoção em seus olhos, somente a compreensão do significado desse momento.

Do outro lado da arena está seu oponente. Ele é gordo e parece estar assustado. Provavelmente foi empurrado pela família até ali.

Os dois adversários se ajoelham diante do camarote da Diretoria. Um dos homens encapuzados levanta a mão em reconhecimento. Um alto-funcionário se levanta e lê uma passagem do Manual do Colaborador. Todos repetem a passagem e o homem guarda o livro sagrado dentro de um pequeno baú.

Cada um dos adversários recebe uma arma, um bastão forjado com o metal dos Antigos. Ele é um pouco mais pesado do que os bastões com que Jemov treinava, mas seu oponente parece estar ainda menos familiarizado com o objeto.

A seleção começa. Jemov faz um ataque rápido para testar seu adversário. O garoto está assustado e não sabe posicionar seus pés. Ele continua atacando rapidamente. Seu adversário se defende precariamente. Não é difícil derrubá-lo com um golpe bem calculado. Jemov olha para a Diretoria e aguarda o destino do garoto que chora a seus pés.

O nariz retorcido do Diretor geral aparece por baixo do capuz. Sob as verrugas e secreções ainda corre o sangue dos sábios Diretores do passado, mantido intacto através de gerações de uniões cossanguíneas. Apenas ele pode saber o que é melhor para a Empresa.

Um sinal negativo. Jemov escuta um grito de mulher vindo das arquibancadas. O bastão não é muito pontiagudo, mas não é difícil atravessar a carne do pescoço com um golpe decidido. Um pouco de sangue espirra no rosto dele enquanto os olhos do garoto se apagam. Ele está servindo à Empresa, e um verdadeiro funcionário nunca demonstra desgosto ao servir à Empresa.

O próximo oponente foi um pouco mais difícil. Estava em boa forma, mas lhe faltava a frieza e elegância necessárias para o bom combate. Ele era forte e rápido, útil para os trabalhos no subterrâneo. Foi poupado.

As horas passam rapidamente. Jemov é obrigado a derrotar a escória da cidade. A Empresa se orgulha de dar chances iguais para todos.

Pela metade da noite os verdadeiros combates começam. Jemov já está ficando cansado e agora está lutando contra seus iguais. Alguns ferimentos leves. Nenhuma outra execução. A luta final se aproxima.

Dentro da sala de preparação, Jemov está ofegante. Ele está ferido. Seu suor se mistura com o sangue dos vencidos e faz com que a areia grude em seu corpo. Ele não pode se limpar. Não há vergonha na luta de um funcionário e ele não deve limpar as marcas de sua bravura até o fim da Seleção. Jemov tenta afastar o nervosismo. É importante manter a calma. Um funcionário sempre mantém a calma. No fundo de seu coração, Jemov está com medo.

Chega a hora da última etapa. A multidão grita. Jemov entra lentamente na cúpula. Do outro lado da arena está Serap, seu antigo irmão de armas. Preparados desde pequenos pelos mesmos mestres, criados nas mesmas condições. Esse é o verdadeiro adversário de Jemov.

A seleção começa. Os dois adversários não se atacam. Eles andam. Observam um ao outro. Esperam uma oportunidade. Ambos sabem que é tolice pensar em misericórdia. Eles já não são irmãos de armas, são candidatos concorrendo à mesma vaga. Só um deles pode vencer.

Trocam alguns golpes, mas não conseguem ferir um ao outro. A platéia berra com todas as suas forças. Apostas são recolhidas. A saliva escorre de um espectador que grita como uma besta enlouquecida.

Serap não se feriu tanto nas outras lutas. Jemov começa a ficar cansado. Agora é Serap que toma a iniciativa nos ataques. O Diretor continua impassível em seu camarote.

Jemov percebe que não irá aguentar se defender por muito tempo. Ele tenta um último ataque, e falha. Seu joelho é atingido em cheio. Ossos de sua perna podem ser vistos por todos na cúpula.

Ele cai. Seu rosto está contra a areia. Sabe que falhou. Não irá se tornar um alto-funcionário. Sua família irá ter vergonha e pena dele. Não foi forte o bastante. Não foi rápido o bastante. Não foi valoroso o bastante.

Serap olha para a Diretoria e aguarda uma ordem.

Jemov sabe que morrerá agora. Fraco, caído no chão da arena. Ele agarra um punhado da areia. Aquela areia suja onde sempre caíram os derrotados.

Uma idéia desesperada surge em sua mente. Ele atira areia na direção do rosto de Serap. Apoiado em seu bastão e na sua perna boa ele faz uma investida contra o oponente cego. O primeiro golpe na cabeça faz com que Serap abra os olhos. Durante um breve instante os dois jovens se encaram. O rosto de Jemov carrega um misto de dor, raiva e desespero; o de Serap, surpresa, e nada mais.

Os primeiros golpes matam Serap. Os próximos desfiguram seu rosto e liberam a raiva de Jemov. Quando ele termina, a cúpula está em silêncio. Há apenas a respiração ofegante de Jemov e as gotas de sangue pingando de seu corpo.

Todo o público está paralisado. Ninguém sabe o que acontece nessa situação.

Sob o capuz do Diretor, lábios deformados formam um sorriso. Com uma gargalhada ele se levanta e começa a bater palmas. A multidão começa a gritar em comemoração. A seleção está encerrada. O novo funcionário foi escolhido.

Os servos erguem Jemov e começam a levá-lo para o médico bom. Em sua mente ele tenta convencer a si mesmo de que fez a coisa certa. Pensa que não foi ele que inventou o jogo e que é apenas um jogador. Tenta apagar de sua mente o olhar de surpresa de Serap.

Os gritos da platéia não permitem que ninguém escute. Mas se alguém aproximasse o ouvido de seus lábios. Perceberia que Jemov repete as mesmas quatro palavras sem interrupção:

“Era ele ou eu”.