quinta-feira, 4 de maio de 2017

Talvez



Talvez já seja hora
De agir como gente grande
De encontrar um rumo

Talvez eu deva estudar
Fazer uma faculdade
Ou um técnico
Talvez eu encontre algo que eu ame
E um bom emprego
Talvez me desespere e largue tudo
Troque de curso e acabe não me formando em nada
Talvez seja um bom futuro
Talvez perda de tempo

Talvez eu deva conseguir um emprego
Talvez no comércio
Ou na indústria
Trabalhar e morar sozinho
Pagar boleto
Cozinhar
Talvez eu seja mais feliz
Talvez eu enlouqueça com essa vida
E pule de uma ponte
Parece bem possível


Talvez eu deva procurar por alguém
Uma pessoa que me faça flutuar
Talvez essa pessoa goste de mim
E possamos nos divertir juntos
Rir, conversar, abraçar e beijar
Talvez isso me complete
Embora eu não me sinta uma metade
Talvez seja bom só no começo
E com o tempo fique chato
Os comentários começariam a ficar cruéis
E de tão acostumado com ela
Não saberia terminar

Talvez eu deva fazer tudo isso
Ou talvez nada
“Talvez” é a palavra
A ordem, o princípio...  a base
O começo e o fim
A dúvida que mata
A prudência que protege
Talvez seja bom pensar em tantos talvezes
Talvez não
Não sei

quinta-feira, 2 de março de 2017

Exploração


Ela está cansada e sente dor. Seu bebê está para nascer. Grita. Os homens vêm para ajudá-la. Não tem nome, só um código. Um dos homens a chama jocosamente de Mimosa. Ela sofre mais pelo que sabe que irá acontecer do que pela dor do momento.

Maria Fernanda acorda antes do nascer do sol. Ainda cansada da noite maldormida, ela se arruma e sai para trabalhar. Pega um ônibus lotado e passa quase uma hora dentro dele.

O bebê nasceu e Mimosa tem alguns momentos de tranquilidade. Lambe-o de cima a baixo. É tanto amor que não lhe cabe no peito. Ela desfruta da companhia do filho enquanto teme que aconteça com ele o mesmo que com os outros.

É um dia cansativo para Maria Fernanda. Ela trabalha como caixa num hipermercado e tem que aguentar clientes grosseiros o dia inteiro. O supervisor também não dá descanso. Ele é um oprimido que oprime seus irmãos. Ela sabe que deveria ter pena dele, mas às vezes é difícil entender pessoas assim.

Termina o expediente e ela entra em outro ônibus lotado para chegar à faculdade. Estuda Ciências Sociais. Tem esperança de mudar o mundo através da luta e da educação. Na aula ela discute os problemas do mundo e aprende sobre a exploração. Como ela a detesta. Não entende como as pessoas podem ser coniventes com isso.

Depois de debater e criticar a exploração ela ainda encontra forças para ir numa reunião do coletivo. Troca vivências e faz planos sobre como lutar contra a opressão.

O tempo passa e Mimosa começa a ficar nervosa. Os homens vieram olhar o seu bebê e saíram satisfeitos. Foi assim antes.  Mais tarde os homens voltam. Eles o levam embora.  Tanto mãe quanto filho gritam desesperadamente. “Por quê?” ela pensa. “Por quê?”

A resposta vem logo. Eles colocam as malditas mangueiras em suas tetas. O leite de seu filho vai ser roubado. “O que eles fazem com isso?”.

Maria Fernanda sai do trabalho e vai direto para o protesto. Ela sente que precisa lutar contra a injustiça, que precisa fazer a diferença. Passa a noite caminhando e cantando. Ela faz isso por todos, pelos velhos e crianças, pelo bem da humanidade. Sente-se orgulhosa.

A mãe e o filho passam as próximas semanas chorando e chamando um pelo outro. A mãe é sugada e sente suas forças sendo levadas pelas mangueiras malditas. O filhote tem medo. Está num espaço pequeno e não tem nada para fazer além de comer e sofrer.

Cerca de dois anos se passam.  Mimosa parou de dar leite e foi assassinada pela sua inutilidade. Outra tomou o seu lugar e deu continuidade ao ciclo. Seu filho já é grande e forte. É levado para um lugar de onde os bois não voltam. Ele sente uma dor aguda e cai no chão. Sua consciência começa a se desfazer. Ele treme no chão frio e tudo fica escuro. Nos últimos instantes ele se lembra de sua mãe.

Maria Fernanda vai se formar. Orgulhosa de sua luta contra a opressão e a exploração, ela organiza um churrasco com seus colegas e prepara um pudim de leite para levar. Lá, ela come com prazer um pedaço de costela bovina, saboreando o sabor intenso da carne. Ela propõe um brinde: “Por um mundo sem tirania!”.

domingo, 19 de fevereiro de 2017

Embaixo da ponte

           “Vadia de merda”, “puta” . Essa guria realmente irritou ele. Postou uma foto com uma camiseta de super-herói. “Poser” . Ele enche a postagem de xingamentos. Ela só queria chamar atenção.
            Aff, um viado de merda postou uma foto de dois homens de mãos dadas. Decide mandar uma foto de uma rosquinha em uma fogueira. O dono da postagem fica irritado. “Hahaha, trouxa” . A zoeira não tem limites.
            Diverte-se. Fala sobre bacon nas postagens veganas, manda os comunistas irem para Cuba e diz que seu deputado favorito vai matar todos os vagabundos quando for eleito presidente.

            Fica entediado. Decide jogar. Entra na fila do jogo e consegue um time. Decide que quer jogar na posição principal e ameaça entregar o jogo se não deixarem. Os outros jogadores são uns babacas. Em cinco minutos de jogo já morreu três vezes por causa do time incompetente. Xinga todos. Se fizessem o que ele manda estariam vencendo. Decide entregar o jogo. Diz para os inimigos a posição do time e se entrega para a morte certa. A história se repete mais algumas vezes durante a noite.
            Recebe uma mensagem no celular. São fotos que uma guria mandou para o namorado. Ele repassa para todos os seus contatos. Junta alguns amigos para mandar mensagens para ela. Vai ser uma semana divertida.
            Começa a ficar tarde. Sente sono e vai dormir. No dia seguinte tem mais.
            Acorda com sua mãe batendo na porta. Levanta-se e vai para a cozinha, onde seu achocolatado já está pronto. Dá um beijo na mãe, pega a mochila e sobe na van escolar. Sua mãe observa orgulhosa o filhos indo embora. “Que menino bom”.

domingo, 11 de setembro de 2016

Friendzone

            

            Vadia, puta, piranha desgraçada. Ele entra no quarto e liga o computador. Faz indiretas em todas as redes sociais, manda mensagens obscenas em algumas. Como ela ousou fazer isso? Está indignado.

            Ele a observava desde que chegou na turma, transferida do turno da tarde. Ela era linda: ruiva, gostosa, gentil e de riso fácil. Todos adoravam ela.

            Foram alguns meses nas sombras. Vasculhava as redes atrás dela. Encarava quando não tinha ninguém olhando e desviava o olhar quando ela percebia. Deitava-se na cama e ficava angustiado ao pensar que nunca poderia ter uma mulher como aquela.

            Um dia veio a chance. Saiu para dar uma volta pela escola e a encontrou chorando atrás de um prédio. Ele já tinha lido textos sobre isso.

            Primeiro se aproximou e perguntou se algo estava errado. “Não”. Depois, ele disse que tudo estava bem, que se quisesse poderiam conversar. Ela se abriu, contou que estava quase repetindo em matemática. Ele demonstrou todo o apoio que poderia e saiu na foto como um cara gentil e atencioso.

            No mesmo dia se conectaram nas redes. Na manhã seguinte conversaram no intervalo. Ao fim da semana já se consideravam amigos.

            Uma rotina se estabeleceu. Conversavam, ouviam um ao outro, se ajudavam na escola. Ele procurava atender a cada desejo dela.

            Pensava em se declarar, mas tinha medo. Deixava para depois. Ela ia se jogar pra cima dele com o tempo. Tinha lido sobre isso. “Se você é gentil com uma guria ela vai querer transar contigo”, pensava, “é uma regra”.

            Tudo corria bem. Até hoje, quando ela apareceu com um namorado novo. Ele ficou furioso. Ele viu ela primeiro! Como pôde trocar ele por um playboyzinho de merda como esse? Não tinha nenhuma consideração por ele? Gritou que a amava e que fazia tudo por ela, que era uma vadia por não querer ficar com ele. Usou todos os palavrões que conhecia e saiu bufando da lancheria.

            Ela fez o que podia fazer: chorou. De uma só vez perdeu um amigo e descobriu que fora feita de boba. Cresceu dentro dela um misto de raiva e tristeza que fez ela sentir que ia explodir. O que se faz nessa situação?

            Agora ele está sentado na frente do computador. Conversa com seus amigos e xinga a ingrata. Mulher é burra mesmo.  Mas vai seguir em frente, tem uma garota do primeiro ano que é bem bonitinha, talvez com ela dê certo. Por enquanto resta esperar. Friendzone é foda.

sexta-feira, 30 de outubro de 2015

Num cavalo branco

Trigger Warning: estupro



 Num cavalo branco


     Ele é um cara bacana, o sonho de toda mulher de esquerda. Estudante de ciências sociais, fuma um de vez em quando, defende o feminismo, tem barba. É engajado e frequenta os coletivos.

     Ele toca violão e faz artesanato. Ele discursa contra o capitalismo e fala de mundos melhores onde não existirá pobreza e todos serão iguais. Ele discursa sobre amor livre e encanta as garotas que estão descobrindo sua liberdade.

     Hoje é dia de festa de rua. Ele se encontra com o pessoal e começa a beber e conversar. Discutem política e falam de bandas desconhecidas. Discretamente ele começa a observar seu ambiente. Há muitas garotas bonitas. Algumas das quais ele já se cansou. Na roda de conversa dele tem uma caloura muito interessante. Gostosinha, com ar de bobinha, inocente.

     Ele consegue separar ela das amigas e começa a jogar o jogo. Ele fala sobre suas viagens, fala sobre os livros que leu, sobre as pessoas que conheceu. Ela parece se encantar e sorri. Quando ela faz uma observação, ele a corrige citando textos obscuros que ele sabe que ela não vai conhecer. Sabe que precisa fazer ela se sentir mal.

     Vai empurrando mais cerveja. Quando percebe que ela já está tonta decide agir. Começa a falar sobre liberdade sexual, sobre como as mulheres livres transam quando bem entendem. Convida ela para ir na república dele, que fica ali pertinho. Diz que quer conversar melhor, diz que ela é diferente das outras e que ele quer se aproximar dela.

     Entram no quarto, ele coloca um som e senta com ela na cama. Diz que ela é muito bonita, coloca a mão na perna dela. Percebe que ela está dura, olhando para baixo, mas continua mesmo assim. Aproxima seu rosto do dela e a beija. Ela se vira mas ele vira o rosto dela de volta e o segura enquanto continua o beijo. Deita ela na cama e começa a sentir seu corpo. Ela tenta empurrar ele, mas não é forte o bastante e não está sóbria o bastante para conseguir. Ele a penetra e ignora o choro baixinho que escuta.

     Faz o que tem que fazer e sai de cima. Se irrita com o choro dela, se irrita com o sangue na cama dele. Chama um táxi e joga ela dentro. Entra no quarto e acende um. Está tranquilo. Ela não vai reclamar. E se reclamar não vai dar em nada. Todo mundo sabe que ele é um cara bacana, o sonho de toda mulher de esquerda.

terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

Conto sem título




Era uma vez um homem que nasceu em um mundo normal e viveu uma vida normal (ao menos até o final dela). Nascido no complexo subterrâneo XX-I, ele sempre viveu bem. Na sua infância, assistiu televisão e estudou. Na adolescência, conheceu uma garota que o suportava e aceitou ser sua namorada. Quando se tornou um adulto, mudou-se para um cubículo habitacional e conseguiu um bom emprego processando dados.
            Sua vida era perfeita, até o final daquele dia. Ele acordou com o despertador e se vestiu rapidamente. Apreciou as paredes prateadas de seu cubículo enquanto bebia um copo de leite e comia um pedaço de pão. Tomou banho e saiu do seu cubículo. Atravessou o longo corredor (também prateado) do quarto andar. Depois de descer as escadas, recolheu a correspondência e foi pegar o transporte. Chegou ao trabalho, cumprimentou os colegas e começou a digitar em sua repartição. Ao meio-dia comeu um lanche e conversou com os colegas sobre o trabalho e sobre outros colegas. 
No fim de tarde, pegou um transporte e voltou para o seu cubículo. Tomou banho, saiu e entrou em outro transporte. Desceu em um centro de alimentação. Junto de sua noiva (com quem começou a namorar na adolescência) desfrutou de uma refeição n° 7, como fazia todas as semanas. Enquanto comiam, os dois conversaram sobre trabalho, colegas de trabalho, família e familiares. Depois disso, os dois tomaram um transporte até um centro de romantismo e alugaram um cubículo para casais. Lá, se esfregaram durante algum tempo, como também faziam todas as semanas. Depois disso ambos tomaram transportes para seus respectivos cubículos.
Foi algum tempo depois de chegar que o homem descobriu que sua rotina estava em perigo. Logo antes de ir dormir, o homem se lembrou de que não tinha aberto a correspondência. Depois de passar os olhos rapidamente por algumas contas, o homem encontrou uma carta do conselho diretor do complexo. Eles iriam construir uma fábrica de acessórios automotivos no mesmo local em que seu centro habitacional estava. Ele teria que se mudar. Nervoso com a notícia, o homem foi dormir.
            Ao longo das próximas semanas o homem teve que tomar várias providências. O dinheiro da indenização não foi suficiente para comprar outro cubículo habitacional. Foi forçado a ir morar em um quarto na parte antiga do complexo. O prédio não obedecia aos novos padrões. Ao invés do belo prateado que dominava a arquitetura contemporânea, ele era amarelo claro e tinha muitos detalhes em madeira. O homem se surpreendeu com a falta de metal e plástico naquele lugar. Não era à toa que o quarto era absurdamente barato.
            Exceto pelo que aconteceria mais tarde, aquele dia foi normal. O homem acordara na mesma hora de sempre, trabalhara como sempre e conversara como sempre sobre os assuntos de sempre. No entanto, nessa primeira noite lá, teve uma surpresa. Encontrou uma planta perto de sua cama. Era uma planta relativamente pequena, adequada para um quarto de aluguel, mas ela impressionava com o tamanho e cor de suas enormes folhas. Era quase impossível ver o vaso que sustentava aquela vasta cabeleira verde. Perplexo, o homem foi questionar a dona do prédio, que não pareceu gostar muito do assunto. Descobriu que aquela planta estava no quarto há muito tempo e que os últimos inquilinos pareciam gostar muito dela.
            O homem decidiu deixar de lado a planta e as caixas da mudança. Foi dormir.
            Mal sabia ele que aquela não era uma planta comum. No centro da densa camada de folhas, vivia uma pequena fada. Bem pequena mesmo, muito menor que de um polegar. O corpo da criaturinha era coberto por diferentes tons de verde e seus cabelos emolduravam um rostinho perfeito que abrigava dois olhos absolutamente negros.
            Quando o homem adormeceu, a fada bateu suas pequenas asas translúcidas e foi conhecer o novo companheiro. Ela estava animada. Esteve muito entediada desde que levaram seu último companheiro dali. Existem muitos tipos de fada. Essa em particular (assim como suas irmãs) estava presa à planta em que nascera. Depois que ela foi retirada do bosque e vendida, a fada foi obrigada a acompanhá-la, deixando um rastro nos corações daqueles que cruzaram seu caminho. Apesar de tímida, a fada gostava das pessoas e desde que chegou naquele quarto ela sempre brincara com seus habitantes (e sempre lamentara quando eles eram levados embora).
            A criaturinha pousou na testa do homem e começou a explorar o novo terreno. Caminhou sobre os vincos na testa, dançou sobre os olhos e passou horas brincando no seu cabelo. Ela ficou feliz com o novo companheiro. O antigo era careca e ela já estava enjoada de patinar naquela cabeça. Achou muito mais divertido agarrar aqueles cabelos.
            Naquela noite o homem teve um sonho diferente de qualquer sonho que já tinha tido antes. Sonhou com um bosque. Sonhou com árvores. Sonhou que molhava as pontas dos pés em um lago cristalino. Também sonhou com um mulher de pele esverdeada que lhe afagava os cabelos. Sonhou com beijos tão suaves quanto a brisa da noite.
            O homem não acordou quando o despertador tocou. Ele acordou horas mais tarde, quando algum outro inquilino derrubou um objeto pesado no corredor. Ainda tentando se agarrar às últimas imagens daquele sonho, o homem se virou e percebeu que estava atrasado. Vestiu-se apressadamente e desceu as escadas correndo.
            No caminho para o trabalho, o homem percebeu que se sentia feliz. Começou a repassar os detalhes daquele sonho. Quando chegou ao trabalho, continuou a pensar no sonho. Na hora do almoço, tentou conversar com seus colegas sobre ele, mas não conseguiu. Sentiu-se tolo falando sobre isso. Eles riram e rapidamente descartaram o assunto. Continuaram falando sobre trabalho e outros colegas. Frustrado, ele voltou a trabalhar.
            O homem preparou dois despertadores naquela noite. Mais uma vez a pequena criatura saiu de sua toca assim que o homem dormiu. Mais uma vez ele sonhou com árvores, água e beijos.
             Naquela manhã o homem ficou triste quando os despertadores tocaram e ele teve que se levantar, mas rapidamente a lembrança do sonho fez com que ele se animasse. Alegremente ele desceu as escadas e foi trabalhar. Mais uma vez ele tentou conversar com seus colegas sobre esse sonho, mas o assunto foi rapidamente descartado como sendo uma excentricidade dele. O homem não se importou muito com isso. Iria encontrar com sua noiva naquela noite.  Estava ansioso para ouvir o que ela teria a dizer sobre aquele sonho.
            O homem chegou ao centro de alimentação antes da hora. Começou a ficar nervoso. Tentou se distrair com o cardápio. Não conseguiu ler nada. Começou a planejar como iria contar a história. Conforme planejava seu coração batia mais rápido. Não entendia bem por que estava tão animado. Estava tendo dificuldade de ficar sentado.
            Depois de algum tempo sua noiva chegou. Ele a cumprimentou com mais entusiasmo do que de costume, o que levantou alguma suspeita. Eles pediram o prato de sempre. Antes de contar sua história, o homem teve que ouvir algumas reclamações de sua noiva sobre o trabalho.
            Então o homem contou de seu sonho. Tentou descrever o melhor que pôde cada uma daquelas sensações maravilhosas. Falou sobre como ficou tão feliz que não ouviu o despertador. Disse que de alguma forma aquele sonho tinha despertado nele algo de novo e maravilhoso. Cometeu um grande erro.
            Na metade da narrativa o homem começou a se arrepender de ter mencionado o assunto. A expressão de sua noiva oscilava entre tédio e reprovação. Depois da narrativa ele foi obrigado a ouvir um sermão sobre como tinha que levar seu trabalho a sério e não deixar ele ser prejudicado por bobagens. Além disso, teve que convencê-la de que não estava fantasiando com outras mulheres. Por fim, desculpou-se.
            Pela primeira vez desde aquele sonho, o homem se sentiu triste. Sentiu que existia entre ele e aquela mulher uma distância que nunca poderia transpor. Sentiu que ela era uma estranha. Como poderia explicar? Como ela não entendia a beleza do que dissera? Como não via como ele estava se sentindo? Porque fez questão de fazer ele se sentir mal com algo que era tão importante para ele?
            Naquela noite, como de costume, ele se esfregaram durante alguns minutos. O homem se sentiu um pouco enjoado, mas achou melhor evitar mais uma briga. Cumpriu com sua obrigação.
            Chegando em casa ele tomou banho e se jogou na cama. Ficou pensando no jantar. Sentiu-se idiota.  Adormeceu enquanto relembrava de seus erros.
            Sonhou. Sentiu um alívio no peito. Passeou por lugares que nunca tinha visto antes. Conversou com criaturas antigas. Explorou uma longa caverna iluminada pela luz de milhares de bichinhos voadores. No centro da caverna, encontrou novamente aquela mulher...
            Acordou amaldiçoando os despertadores. Juntou suas forças e foi trabalhar. Decidiu que não iria mais falar sobre aqueles sonhos. Insistir nisso seria desgastante e inútil.
            Nas semanas seguintes sua vida voltou à rotina normal. Ele voltou a acordar no horário certo e a conversar sobre os assuntos certos. Sua noiva pareceu esquecer-se das bobagens que ele falara e a esfregação continuou como sempre (apesar de ter se tornado mais uma obrigação do que qualquer outra coisa).
            Passou a acordar todos os dias xingando o despertador e tentando se agarrar nas últimas lembranças do sonho. Começou a conversar menos com seus colegas. Decidiu se focar no trabalho para que o tempo passasse mais rápido. Dormia assim que chegava em casa.
            Perdeu o gosto pelo mundo desperto. Começou a ficar incomodado com a vastidão cinza do complexo. Não conseguia mais ter interesse no que as pessoas falavam. Começou a ter nojo da comida gordurosa e artificial que era forçado a comer. Estava cercado de coisas sem vida.
            Os sonhos se tornavam cada vez melhores. Tinha a impressão de que conseguia ficar cada vez mais tempo naquele mundo. Começou a perceber com mais clareza os detalhes que o cercavam. Passava horas deitado em silencio ao lado da mulher verde. Sentiu que era amado.
            Essa foi a sensação que mais o perturbou: ser amado. A ideia tomou conta de sua mente. Começou a ter dificuldade para trabalhar. Quando estava acordado, ficava fantasiando com aquela sensação. Quando não fantasiava, ficava angustiado ao perceber que nunca a teria no mundo desperto.
            Passou muito tempo nessa vida de sonhos e angústias. Um dia decidiu faltar ao trabalho. Passou a maior parte do dia sonhando. Foi repreendido depois, mas não se arrependeu. A escapada se tornou um hábito cada vez mais freqüente. Foi demitido.
            Naquela manhã ele acordou se sentindo muito feliz. Apesar de acordado, não sentiu nenhum sinal de angústia se aproximando. Durante o dia ele visitou alguns estabelecimentos do complexo e tomou algumas providências. À noite, abriu um frasco de soníferos. Engoliu todos e foi se deitar. Sentiu que estava em paz.
            A pequena fada lamentou quando mais um de seus companheiros foi levado pelos homens vestidos de branco. A dona do prédio abaixou mais uma vez o preço do quarto. A noiva do homem ficou terrivelmente frustrada com o tempo que tinha jogado fora. A vida no complexo continuou. 

sexta-feira, 22 de junho de 2012

Anfíbio


Anfíbio

Árvores. Um caminho pela floresta. Névoa. Um fundo preto e um fio de fumaça, como a de um cigarro. A fumaça dança. Imagino uma noite árabe. A fumaça verde saindo de uma venda no canto de um beco. Luz sai de uma janela. Penso em uma mulher que dança com olhos tristes. A fumaça se transforma em linhas. As linhas dançam.
O ônibus quase acertou outro carro. O motorista grita. Percebo que ainda não cheguei ao meu destino. O ônibus volta a andar normalmente.
Penso na mulher que dança. Qual será sua história? A música ganha velocidade. Seus olhos agora transmitem força, como se fossem as vozes de um espírito capaz de sentir tudo o que se poderia ter. Sinto a música que não ouço. Entendo seus movimentos. Tento traduzi-los. Os significados parecem se dissolver quando tento firmá-los. É como tentar agarrar fumaça. As imagens começam a perder vida. Ganho controle sobre elas. Isso as mata.
O ônibus está chegando.  Levanto e fico perto da porta. Ela se abre.
Penso na passagem secreta no coração da floresta. Começo a andar. Poderia ser um andarilho caminhando entre ruínas ancestrais. O que poderia ser encontrado em um lugar assim?
Sou arrancado das ruínas. Alguém me faz uma pergunta. Fico confuso com a mudança de ambiente e não entendo o que ela quer. Com algum esforço percebo que devo informá-la quanto ao horário. Faço o que é necessário e a pessoa sai levemente frustrada com minha dificuldade. Provavelmente pensa que tenho algum problema mental.
Tento não pensar no ocorrido. A mulher que dançava agora está sentada no chão. Ela pensa no sol nascendo junto a uma cabana. Penso no interior da cabana e na vida que se levava nela.
Cheguei ao meu destino. Ainda faltam alguns minutos. Começo a observar as árvores. O vento faz com que elas pareçam vivas. Estranhos seres que se comunicam dançando em um idioma que não tem limites nem convenções. A língua infinita que não conhece o tempo.
Alguém se aproxima para conversar. Tento ser cordial, mas não há nada que poderia dizer no momento.  Falo alguma coisa sobre as árvores. Não consigo expressar nada. A língua mata a imagem. É impossível transmitir usando a língua limitada.
Penso em muros que andam. Penso em abraços de ouriços.
Percebo que estou quase atrasado. Tento chegar a tempo.